segunda-feira, 30 de outubro de 2017



Sobre a imortalidade



Somos seres imortais. Não deixamos de existir, mesmo que a nossa matéria pereça. Certamente alguém mais cético vai dizer que isso é papo de religiosidade, toda aquela história de céu, inferno, etc. Mas não, meu texto não tem nenhum cunho religioso.  Quando me refiro à imortalidade humana, não abordo nenhuma crença ou descrença pessoal. É um fato.
Pois bem, vou ilustrar minha ideia. Uma das minhas avós se chamava Helena, nome que carrego em minha existência desde que vim ao mundo. Vó Helena faleceu de câncer, descoberto em decorrência de um acidente de carro, há mais de vinte anos. Era uma pessoa extremamente paciente e gentil. Era prestativa também, pois todas as semanas ela assava pão e cuca de banana para nós. Ambos eram preparados no forno a lenha, de forma que muitas vezes eles passavam do ponto e chegavam até nós com uma cobertura cor de carvão na casca. Mas isso nunca nos impediu de comer. O carinho com que foram feitos sobrepujava qualquer defeito no tempo do forno. Mas se alguém fizesse algum comentário a respeito, minha doce avó não ficava por baixo e exclamava com veemência: “Pelo menos está bem assado”. Estava mesmo. Hoje, quando alguém na família esquece algo no forno, logo o slogan de defesa da vó surge.
Essa é uma prova da imortalidade dela. Claro que há muitas outras. Muitas e muitas frases pronunciadas e gestos realizados por ela que a trazem de volta a vida todos os dias. Ainda ouço a entonação da voz, o sotaque levemente alemão, a bondade em seu olhar quando dizia suas doces frases. “Mas não é todo dia”, ela falava em tom conciliatório, quando nos colocávamos diante de alguma delícia culinária que nos levava a exceder na quantidade. Minha avó era obesa, ainda assim ela usava essa frase sempre que queria comer um pouquinho a mais. Ou então sua máxima, que me faz recordá-la sempre: “Ou é forno, ou é fogão”. Se você fosse visitá-la no horário do almoço e naquele dia ela estivesse assando pão, não haveria comida. Além do pão, claro. Sua lenta habilidade não permitia que administrasse as panelas e o forno ao mesmo tempo. Ainda assim, priorizando um deles, seus casquinhos escureciam, imagine se estivesse fritando carne ou cozinhando arroz... Era uma decisão bastante sábia.
Ao contrário de minha avó, tenho a habilidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Enquanto faço o almoço, bato e asso bolo. Meus casquinhos não ficam escurecidos. E por isso eu lembro tanto dela. Ela deixou nosso convívio quando eu era uma meninota de onze anos. Nunca tive a oportunidade de lhe servir um almoço cozinhado concomitante com o bolo. Nunca pude mostrar essa habilidade que desenvolvi. Mas, quem sabe, daqui uns bons anos, quando eu estiver cozinhando para meus netos, essa agilidade e destreza se deteriorem. Aí vou descobrir que, em função da lentidão que a idade avançada produz, não poderei mais assar um bolo e preparar o almoço ao mesmo tempo. Nesse caso, direi para meus netinhos, com o mesmo carinho e gentileza da minha avó: “Hoje não tem almoço... Ou é forno, ou é fogão”...
É maravilhoso perceber o quanto as pessoas que amamos são imortais. E essa imortalidade nos é apresentada em fatos tão pequenos, tão ínfimos. Meu marido perdeu sua avó há pouco mais de um ano. Ela também era uma pessoa excepcional por seu altruísmo. Todos os domingos eu costumo me lembrar dela, no momento em que estou preparando o creme da maionese. Quantas vezes, ao misturar o óleo, o creme desanda e fica dessorado? Imediatamente a vó Laura surge em minha mente, dizendo com propriedade: coloca água, já conserta. E conserta, viu? Nunca mais perdi meus cremes de maionese graças a ela. Mesmo depois de sua partida, seu ensinamento ficou. Como tantos outros. Ela jamais morrerá para mim.
Enfim, eu precisava falar dele, meu amado pai. Todos os anos, no dia de finados, ele se levanta bem cedo e ia até o cemitério. Na entrada, comprava um pequeno arranjo de flores. Subia lentamente e buscava no meio de tantas lápides quase todas iguais, aquela que se distinguia pela pessoa que repousava ali, pela essência que trazia. No caso, era o túmulo dos meus avôs. Ele parava, olhava por um tempo e fazia uma oração silenciosa. Não era muito demorada, pois ele era um homem de poucas palavras. E afinal, as coisas mais importantes são rápidas de dizer: “Eu te amo”, “sinto sua falta”, “espero que esteja bem”. Em seguida, ele procurava um lugar para acomodar o vasinho. E assim era sua visita ao cemitério no dia dois de novembro. Em silêncio, concentrado... Como um ritual.
Pode ser que para você não faça sentido essa tradição. “Você deve fazer pelas pessoas enquanto estão vivas”, você dirá. “Os mortos não poderão admirar as flores”. Não se trata disso. Que devemos amar as pessoas enquanto elas estão entre nós é verdade irrefutável. No entanto, depois que eles partiram, pouco nos resta fazer. A não ser preparar a comida que eles gostavam, repetir as frases que eles falavam, refazer os rituais que eles faziam... É pouco, eu sei, principalmente depois de tudo o que eles fizeram por nós. Depois da marca imortal que eles deixaram em nossas almas. Eles nunca serão esquecidos e, dessa forma, nunca morrerão.
 

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